O DIREITO INTERNACIONAL
E A "LIBERTAÇÃO" DO IRAQUE
Robert Fisk
 

Vamos falar de crimes de guerra. Sim, eu sei dos crimes de guerra de Saddam. Ele massacrou os inocentes, jogou gás nos curdos, torturou seu povo e – embora seja verdade que nós permanecemos bons amigos desse açougueiro por mais da metade de sua horrível carreira – pode ser responsável pela morte de até um milhão de pessoas, a contagem de mortos da guerra Irã-Iraque de 1980-1988. Mas enquanto nos congratulamos pela "libertação" de Bagdá, um evento que está rapidamente se transformando num pesadelo para muitos de seus habitantes, é um bom momento para lembrar como estamos conduzindo essa guerra ideológica.

Então vamos começar pelo fim – como o épico "E O Vento Levou", falando dos saques e da anarquia com o qual a população iraquiana recebeu nosso presente "libertação" e "democracia" para eles. Começou em Basra (Baçorá), obviamente, como nossa própria vergonhosa resposta britânica à orgia de roubos que tomou conta da cidade. Nosso ministro da defesa, Geoff Hoon, fez alguns comentários especialmente infantis sobre esse desgraçado estado de coisas, sugerindo na Câmara dos Comuns que o povo de Basra estava simplesmente "libertando" – aquela palavra novamente – sua propriedade do partido Baath. E o exército britânico entusiasticamente endossou esse absurdo.

Mesmo enquanto as imagens das pilhagens em Basra rodavam o mundo, havia o Tenente-Coronel Hugh Blackman dos Dragões dos Guardas Reais Escoceses alegremente dizendo à BBC que "não é absolutamente da minha conta me intrometer". Mas obviamente É da conta do Coronel Blackman "se intrometer". A pilhagem merece uma cláusula de prevenção específica nas Convenções de Genebra, da mesma forma que na Convenção de Haia de 1907, na qual os representantes em Genebra basearam suas "regras de guerra". "A pilhagem é proibida", dizem as Convenções de Genebra de 1949, e o Coronel Blackman e o sr. Hoon deveriam dar uma olhada em "Crimes de Guerra", publicada em conjunto com o Departamento de Jornalismo da Universidade da Cidade – a página 276 é a mais dramática – para entender o que isso significa.

Quando um poder de ocupação toma o território de outro país, ele automaticamente se torna responsável pela proteção de seus civis, sua propriedade e instituições. Assim as tropas estadunidenses em Nassíria ficaram automaticamente responsáveis pelo motorista que foi assassinato por seu carro no primeiro dia da "libertação" da cidade. Os estadunidenses em Bagdá eram responsáveis pelas embaixadas da Alemanha e Eslováquia que foram saqueadas por centenas de iraquianos na quinta-feira, e pelo Centro Cultural Francês, que foi atacado, e pelo Banco Central do Iraque, que foi incendiado ontem à tarde.

Mas os britânicos e estadunidenses simplesmente descartaram essa noção, ainda que fundada em convenções e direito internacional. E nós jornalistas permitimos que eles assim fizessem. Batemos palmas como crianças quando os estadunidenses "ajudaram" os iraquianos a derrubar a estátua de Saddam Hussein na frente das câmaras de TV esta semana, e mesmo assim estávamos falando na "libertação" de Bagdá como se a maioria dos civis estivesse colocando guirlandas de flores nos soldados ao invés de ficar ansiosos em filas nos pontos de controle, assistindo ao saque de sua capital.

Nós jornalistas estivemos cooperando, também, com um colapso ulterior da moralidade nesta guerra. Tome por exemplo o bombardeio impiedoso da área residencial de Mansur em Bagdá semana passada. Os exércitos anglo-estadunidenses – ou a "coalizão", como a BBC ainda chama teimosamente e falsamente os invasores – alegavam crer que Saddam e seus dois malvados filhos Qusai e Udai estavam ali presentes. Assim eles bombardearam os civis em Mansur e mataram pelo menos 14 decentes, inocentes pessoas, quase todas elas – e isso seriam obviamente do interesse dos sentimentos religiosos dos srs. Bush e Blair – cristãos.

Então alguém poderia esperar que o serviço mundial de rádio da BBC na manhã seguinte questionasse se o bombardeio de civis não constitui um ato ligeiramente imoral, um crime de guerra talvez, por mais que quiséssemos matar Saddam. Esqueça. O apresentador em Londres descreveu o massacre destes civis inocentes como "uma nova virada" na guerra para pegar Saddam – como se fosse normal matar civis, deliberadamente e a sangue frio, a fim de assassinar o nosso mais odiado tirano. O correspondente da BBC no Catar – onde os rapazes do Centcom pomposamente alardeavam que dispunham de inteligência "em tempo real" (o que posteriormente revelou-se uma inverdade) de que Saddam estava presente – utilizaram todo o jargão militar de sempre para justificar o injustificável. A "coalizão", anunciou, sabia que tinha "material sensível ao tempo" – quer dizer, que não teriam tempo de saber se estariam matando civis inocentes na promoção de sua causa ou não – e que este "material acionável" (novamente eu cito esta revoltante comunicação da BBC) não era "isento de riscos".

E então ele prosseguiu descrevendo, sem um só momento de reflexão, sobre as questões morais envolvidas, como os estadunidenses usaram quatro bombas de 1000 kg "arrasa-bunkers para arrasar os lares de civis". Elas são, naturalmente, as mesmas munições que essa mesma Força Aérea dos EUA usaram em seu vão esforço para matar Osama bin Laden nas montanhas de Tora Bora. Então agora nós a usamos, deliberadamente, nas frágeis residências de civis em Bagdá – gente que seria de outro modo digna da "libertação" com a qual nós desejávamos agraciá-las – na esperança de que a aposta, um bocado de "inteligência" deficiente, irá dar certo.

As Convenções de Genebra tem muito a dizer a respeito. Elas se referem aos civis especificamente como pessoas protegidas, como pessoas que devem ter a proteção de um poder beligerante mesmo que se achem na presença de antagonistas armados. A mesma proteção foi pedida para os civis do sul do Líbano quando Israel lançou sua brutal operação "Vinhas da Ira" em 1996. Quando um piloto israelense, por exemplo, disparou um míssil Hellfire ("Fogo do Inferno") contra uma ambulância, matando três mulheres e duas crianças, os israelenses alegaram que um combatente do Hezbolá estava no mesmo veículo. A declaração revelou-se totamente inverídica. Mas Israel foi corretamente condenada por matar civis na esperança de matar um combatente inimigo. Agora estamos fazendo exatamente o mesmo. E Ariel Sharon deve estar satisfeito. Não mais críticas ocidentais melosas a Israel depois que os arrasa-bunkers foram jogados em Mansur.

Mais e mais, estamos cometendo estes crimes. O massacre em massa de mais de 400 civis no ataque aéreo ao abrigo de Amariyah em Bagdá na Guerra do Golfo de 1991 foi feito na esperança de matar Saddam. Por quê? Por que nós jornalistas – mais uma vez, guerra após guerra – somos coniventes com essa imoralidade ao tornar um ato cruel, impiedoso e ilegal numa "nova virada" ou num "material sensível ao tempo"?

Guerras têm o hábito de transformar pessoas geralmente sãs em animadoras de torcida, ou transformar jornalistas racionais em repugnantes e envaidecidos soldadinhos de brinquedo. Mas certamente nós todos deveríamos levar as Convenções de Genebra para a guerra conosco, junto com aquele livrinho da Universidade da Cidade. Porque as únicas pessoas que se beneficiarão dos nossos crimes de guerra serão a próxima geração de Saddam Husseins.
 


Robert Fisk é jornalista irlandês, e trabalha para The Independent. Este artigo foi publicado em 13/04/2003 e está disponível em http://zmag.org/content/showarticle.cfm?SectionID=15&ItemID=3449 Traduzido por Janaína - Círculo Bolivariano de São Paulo (www.unidadepopular.org) e revisado por Álvaro Frota, editor do Boletim Eletrônico do PSTU.