OS IRAQUIANOS E OS B-52
Robert Fisk, de Bagdá, 26/03/2003
Traduzido do inglês por Sérgio Cardoso Morales
 

Durante toda a noite, podia-se ouvir o bombardeio maciço dos B-52. Era um longo, profundo trovejar, às vezes, por vários minutos sem cessar. Os alvos – supostamente a Guarda Republicana – deviam estar a 30 milhas de distância, mas, cada vez que o assustador ruído começava, o ar se tornava pesado no quartinho em que tenho ficado, próximo ao rio Tigre.

Pus algumas flores num vaso perto da janela e a água, nele, sacudia levemente durante toda a noite à medida que as vibrações vinham do solo e do ar. Deus proteja quem está lá longe, eu pensava. "Quando temos soldados no front", disse-nos a todos o Vice-Primeiro-Ministro iraquiano Tareq Aziz, poucas horas antes, "vocês não esperam que os alinhemos para serem alvejados, não é?" Ele riu alegremente desta provocação, mas eu, agora, não acho graça.

Seguramente, a guarda pretoriana de Saddam não estaria esperando no deserto, tanques perfilados, soldados parados em campo aberto? Então, em que miravam os B-52?

De quando em quando, eu punha a cabeça para fora da janela. De longe, para sudoeste, vinha um pálido e perigoso lampejo avermelhado, às vezes, durante um segundo, às vezes, por cinco segundos, um lampejo que crescia de tamanho até atingir, talvez, uma milha quadrada, e, então, de repente, se apagava, a penumbra retornando à escuridão. Os fuzileiros da vanguarda estavam, agora, a somente 60 milhas de Bagdá, disse ao mundo a BBC ontem de manhã. Posso até acreditar.

As longas horas de escuridão são difíceis para os iraquianos. Jogam cartas. Dormem quando o silêncio entre os ataques aéreos permite. De noite, leio uma biografia de Sir Thomas More, que se torna, cada vez mais, perigosamente apropriada para este drama apavorante. A poucas centenas de jardas de meu quarto, há uma grande estátua de Saddam, o braço direito levantado em saudação a seu etéreo povo, a mão esquerda, espertamente, no lado, como em um desfile. O jovem Thomas More teria entendido seu significado. "Um tirano, ele escreveu, é um homem que não permite liberdade a seu povo, que é possuído pelo orgulho, guiado pelo desejo de poder, impelido pela ganância, movido pela sede de fama."

E, no entanto, ontem, a 20 milhas de Bagdá, iraquianos comuns – sem a presença de agentes do governo que seguissem nossos calcanhares – falavam de George Bush exatamente com estas palavras. Eu estava no local que, logo, logo, será a linha de frente de Bagdá – talvez a 10 milhas do lugar dos bombardeios dos B-52, 30 milhas dos fuzileiros americanos mais próximos – e, atrás de mim, as espirais de fumaça negra do óleo em chamas das trincheiras subiam para o céu. Uma feroz tempestade lançava areia em nossas faces, deixando o céu de uma cor vermelho-alaranjada, o terreno tremendo levemente sob nossos pés à medida que os B-52 retornavam.

Um velho empresário iraquiano, que tinha sua matriz ali perto, quis explicar como a vitória que os americanos estavam alegando era precária. "Durante toda a história, o Iraque tem sido chamado de Mesopotâmia," disse ele. "Isto é, "a terra entre os rios". Então, a menos que você esteja entre os dois rios, você não está no Iraque. O General Franks devia saber disso."

Infelizmente para o empresário, os fuzileiros americanos estavam, enquanto falávamos, cruzando o Eufrates, em Nassiriya, ontem, sob tiroteio, enquanto centenas de mulheres e crianças fugiam de suas casas entre as pontes. Mas, ainda por volta do fim da tarde de ontem, só mais ou menos 50 tanques americanos tinham conseguido cruzar para a margem oriental, para a "Mesopotâmia". Isto não tirou o entusiasmo do homem.

"Você imagina o efeito, nos árabes, se o Iraque sai desta guerra intacto?", perguntou-me ele. Só foram precisos cinco dias para que Israel derrotasse todos os árabes na guerra de 1967. E nós, iraquianos, já estamos enfrentando os todo-poderosos americanos por cinco dias e ainda nos mantemos em todas as nossas cidades e não vamos nos render. Só imagine o que aconteceria se o Iraque se rendesse? Que chance teria a liderança Síria contra as exigências de Israel? Que chance teriam os palestinos de negociar uma paz justa com os israelenses? Os americanos não se importam com uma paz justa com os palestinos. Por que eles seriam justos com os iraquianos?"

Este que falava não era um membro do Partido Baath. Este era um homem com diplomas de universidades inglesas. Um de seus colegas tinha um argumento ainda mais persuasivo. "Nossos soldados sabem que eles não terão um tratamento justo por parte dos americanos," disse. "É importante que eles saibam disso. Nós podemos não gostar de nosso regime. Mas lutamos por nossa pátria. Os russos não gostavam de Stálin, mas lutaram sob seu comando contra os invasores alemães. Temos uma longa história de combate às forças coloniais, especialmente vocês, britânicos. Vocês alegam que vêm nos "libertar". Mas vocês não entendem. O que está acontencendo agora é que nós estamos começando uma guerra de libertação contra os americanos e os britânicos."

Agora, o empresário queria falar de Saddam. "Nós, árabes, damos valor à dignidade," ele disse. "Metade do livro de Lawrence, "Os Sete Pilares da Sabedoria", é sobre a dignidade dos árabes. Em nossas terras, o populismo venceu a democracia por razões históricas. Saddam proporcionou segurança societal. Estou seguro, desde que não desafie o regime. Saddam pode ser muito severo com os dissidentes políticos, mas ele é, também, muito severo com criminosos ou com qualquer um que nos agrida. Isso inclui os americanos."

O Vice-Presidente, Taha Yassin Ramadan, foi mais retórico, ontem. Falou de uma "invasão e agressão pérfida" e exigiu que os países árabes façam um boicote de petróleo contra os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, que, pelo menos, retirem os embaixadores das embaixadas em Washington e Londres. Que esperança!

Mohamed Saleh, o ministro do comércio, acusou o Secretário-Geral da ONU, Kofi Annan, de curvar-se à pressão americana ao impedir que navios com suprimentos, do programa petróleo por alimentos, desembarcassem no Iraque. "Não precisamos de assistência humanitária," anunciou e insistiu que o governo do Iraque estava enviando 20 caminhões por dia, com farinha, para Basra. O fogo da artilharia britânica contra a cidade, acusou, já incendiara um armazém de farinha.

Mas, havia outras histórias, vindas do sul, que preocupavam os iraquianos, ontem. Como, por exemplo, 100 iraquianos que estavam à beira da estrada, ao longo de 10 milhas do trecho ao norte de Nassiriya, vieram a ser mortos?

Um correspondente francês descreveu o cheiro da carne queimada, quando passou por eles, acrescentando que não sabia dizer se eram soldados ou civis. O que aconteceu a estas pessoas, os iraquianos se perguntam? Quase toda a guerra, no Oriente Médio, termina em um massacre, uma tétrica rotina que martela em todas as mentes.

No início da noite de ontem, o ar se tornou pesado quando os B-52 retornaram mais uma vez. Em Bagdá, obediente a conselhos, pus as mãos em algumas maçãs e bananas para comer olhando pela janela do quarto.

Voltarei à biografia de Thomas More. Mas, tenho uma estranha intuição. Se esta guerra ainda continuar quando eu tiver chegado ao fim do livro, se os bombardeios e a artilharia continuarem quando Thomas More for decapitado, então, provavelmente, rolará também a cabeça do General Tommy Franks.


O texto orginal foi retirado de http://www.arabnews.com/Article.asp?ID=24286