O ESTADO BANDIDO
por John Pilger [*]
 

Durante 101 dias os Royal Marines estiveram engajados numa operação ridícula como mercenários dos Estados Unidos, cuja ilegalidade o qualifica como o principal Estado bandido do mundo.

Atirando em sombras e ocasionalmente em membros de tribos, explodindo montes de imundícies e exibindo armas "capturadas" para a imprensa, tudo isto tem sido parte do humilhante papel dos Marines no Afeganistão - um papel que lhes foi impingido pelo governo Blair, cuja deferência e conivência com a gang de Bush tornou-o uma paródia do cortesão imperial.

Gang não é um exagero. A palavra, no meu dicionário, significa "um grupo de pessoas que atuam em conjunto para fins criminais, vergonhosos". Tal definição descreve acuradamente George W. Bush e aqueles que escrevem seus discursos e fazem suas decisões e que, desde a sua subida ao poder, têm minado as próprias bases do direito internacional.

No Afeganistão, o seu registo é indiscutível. O assassinato de 40 convidados numa festa de casamento não foi uma "asneira" mas o resultado direto de uma política de atirar e bombardear primeiro e perguntar depois, tal como anunciada por George W. Bush nas semanas após o 11 de setembro.

A capacidade da máquina militar americana para esmagar países empobrecidos nunca esteve em causa - mas condicionada, isto é, com ausência de tropas americanas no terreno e sua substituição por forças "aliadas", como os Royal Marines. (Durante o apogeu do Império Britânico, foi atribuído um papel semelhante aos cipaios indianos e a outras tropas coloniais, embora os britânicos, ao contrário dos americanos, também estivessem preparados para sacrificar os seus próprios soldados).

Desde Outubro último, líderes afegãos têm relatado acerca de aviões americanos a destruírem aldeias "demasiado pequenas para serem marcadas em qualquer mapa" com "mais de 300 pessoas assassinadas" numa noite. Numa família de 40 pessoas, só um garoto e sua avó sobreviveram, relata Richard Lloyd Parry, do Independent.

Afastados das câmaras da televisão "pelo menos 3.767 civis foram mortos pelas bombas americanas entre 7 de Outubro e 10 de Dezembro de 2002 (...) uma média de 62 inocentes mortos por dia", segundo um estudo efetuado pela Universidade de New Hampshire, nos EUA. Estima-se agora que este número tenha atingido 5000 civis mortos: quase o dobro do número de mortos no 11 de Setembro.

Não há evidência de que um único líder do al-Qaeda tenha sido capturado ou, que se saiba, morto. Nem tão pouco o líder dos Taliban. A mudança no Afeganistão é mínima em comparação com o sanguinário feudalismo que exerceu o poder durante a década de 1990, e antes de os Taliban subirem ao poder.

Depois de todas as mudanças cosméticas em Cabul, a capital, a mulheres ainda não ousam andar sem o véu. "Os Taliban costumavam exibir o corpo dos enforcados durante quatro dias", disse sarcasticamente o novo ministro da Justiça do regime instalado pelos americanos. "Nós somente exibimos o corpo da vítima por um curto espaço de tempo, digamos quinze minutos, após a execução pública".

Descrever isto como um "triunfo do bem sobre o mal", como afirmou Bush, com um eco de Blair, é como celebrar a superioridade da máquina de guerra alemã em 1940 como uma justificação do nazismo.

Não só os Marines mas também o público britânico podem sentir-seludibriados. Tanto Washington como Whitehall sabiam há muito que a al-Qaeda estava acabada no Afeganistão. Além do elemento de vingança, para satisfação interna, os americanos começaram a reforçar o controle dos seus senhores de guerra favoritos: pessoas responsáveis por milhares de mortes no seu afligido país.

Em Outubro, os EUA planearam instalar um regime dominado por membros da tribo Pashtun que, previram eles, abandonariam os Taliban. Mas a divisão nos Taliban nunca aconteceu e os americanos desde então mudaram de curso e tentaram juntar uma "coalizão" de senhores da guerra Tajiks e Uzbeks. O atual "presidente interino", Hamid Karzai, embora um Pashtun, não tem base de poder tribal ou militar. Ele é simplesmente o homem dos EUA.

A presença dos Royal Marines, dirigindo a chamada "International Security Assistance Force", é por muitas razões algo diretamente do século XIX. Sob o comando dos americanos, os Marines foram instruídos no sentido de manterem os senhores da guerra favoritos longe das gargantas uns dos outros até que a região pudesse ser "estabilizada" para o petróleo americano e outros interesses estratégicos.

O vasto potencial das fontes de energia na Ásia Central tornou-se crítico para a profundamente perturbada economia americana, e para a administração Bush, que é dominada pelos interesses da indústria do petróleo, nomeadamente a própria família Bush. Uma investigação do Asia Times, de Hong Kong, descobriu em Janeiro último que os EUA estavam a desenvolver freneticamente "uma rede de múltiplos oleodutos no Cáspio".

A desgraçada Enron Corporation, uma das maiores apoiadoras da campanha de Bush, realizouou um estudo de viabilidade de um oleoduto de US$ 2,5 mil milhões a ser construído através do Mar Cáspio. Altos responsáveis americanos, atuais e antigos, incluindo o vice-presidente Cheney, "têm fechado grandes contratos direta ou indiretamente em benefício das companhias petroleiras", diz o Asia Times .

Se houvesse um mapa das bases militares americanas instaladas na região para combater "a guerra ao terrorismo" seria imediatamente evidente que elas seguem quase exatamente a rota do projetado oleoduto para o Oceano Índico.

Blair e o volúvel Geoffrey Hoon, naturalmente, não proporcionaram nenhuma desta informação vital ao povo britânico, sem mencionar os soldados britânicos que enviaram para atuar no jogo imperial dos EUA. Felizmente, as tropas sofreram apenas gripe gástrica. O povo afegão não tem sido tão feliz.

Qualquer dúvida acerca da sistemática forma homicida como os militares americanos operam no Afeganistão é dissipada por uma reportagem de Maio da imprensa americana acerca de crianças abatidas a tiros em campos de trigo enquanto dormiam. Durante quatro horas, helicópteros artilhados americanos saturaram os campos e uma aldeia com balas e mísseis antes de aterrarem para vomitar tropas americanas que atiraram nos sobreviventes e detiveram outros "suspeitos".

De fato, a área era conhecida por sua oposição aos Taliban e o governador da província de Oruzgan confirmou que aquelas pessoas assassinadas "eram pessoas comuns. Não havia al-Qaeda ou Taliban ali".

Nos últimos meses, o Estado bandido americano rasgou o Tratado de Quioto, que reduziria o aquecimento global e a probabilidade de desastre ambiental. Ameaçou utilizar armas nucleares em "ataques preventivos" (uma ameaça refletida por Hoon). Tentou sabotar o estabelecimento de um Tribunal Criminal Internacional, compreensivelmente, porque os seus generais e principais políticos podem ser intimados como réus.

Ele mais uma vez minou a autoridade das Nações Unidas ao permitir que Israel bloqueasse um comitê de investigação da ONU acerca do assalto israelense ao campo de refugiados palestinos de Jenin, e ordenou aos palestinos que se livrassem do seu líder eleito em favor de um fantoche americano.

O Estado bandido americano ignorou a Conferência Alimentar Mundial, na Itália, e em conferências de cúpula no Canadá e na Indonésia bloqueou ajuda autêntica, tal como água limpa e eletricidade, à maior parte dos povos necessitados da Terra. As propostas para aumentar subsídios alimentares americanos em 80 por cento destinam-se a assegurar o domínio dos EUA no mercado mundial de cereais.

("Quando nos levantamos a cada manhã da mesa do café", disse o executivo-chefe da corporação Cargill, a maior companhia alimentar do mundo, "muito daquilo que acabamos de comer - cereais, pão, café, açúcar e assim por diante - passou pelas terras da minha companhia". O objetivo da Cargill é duplicar de tamanho a cada cinco a sete anos).

Há um desesperado limite (edge) para a maior parte das ações criminosas dos EUA. Os fundamentalistas cristãos do "mercado livre" que mandam em Washington estão preocupados. O défice em transações correntes americano registra um recorde de US$ 34 mil milhões. As compras externas da enorme dívida americana estão caindo rapidamente. O mercado de ações americano está pesadamente super-valorizado, e o dólar é incerto.

Como colocou um comentarista, a "doutrina Bush" assemelha-se a "uma última tentativa de ordenar o mundo totalmente em torno das exigências do capital monopolista americano, antes que se percam as esperanças de poder fazer isso". Por outras palavras, este caminho pode muito bem ser o último lance dos dados antes de a economia americana entrar num sério declínio - como indicava a dramática queda de ontem nos mercados de ações*.

(* nota: Pilger escreveu este artigo em 17/2/03. A primeira semana de bombardeio ao Iraque - entre 17 e 21 de março - foi a mais lucrativa da Bolsa de New York desde 1982. http://www.bbc.co.uk/portuguese/economia/030321_mercados1mla.shtml)
Isto significa controlar os bens petrolíferos e de combustíveis fósseis da Ásia Central. Isto significa atacar o Iraque, instalar um substituto de Saddam Hussein e tomar o controle da segunda maior fonte de petróleo do mundo. Isto significa cercar um novo desafiante econômico, a China, com bases, e intimidar os líderes dos seus principais rivais econômicos, a Europa, minando a OTAN, e atear uma guerra comercial.

Acabo de visitar os Estados Unidos, e é claro que muitas pessoas ali estão preocupadas. E muitas não ousam dizer isso. Seus pontos de vista são raramente relatados nos principais jornais e tevês americanos, os quais são auto-censurados e controlados, talvez como nunca antes.

Em contraposição, o ar está espesso com visões de pessoas como Charles Krauthammer, do Washington Post: "Unilateralismo é a chave para o nosso êxito", escreveu ele, ao descrever o mundo dos próximos cinqüenta anos: um mundo sem proteção de ataques nucleares ou danos ambientais para os cidadãos de qualquer país ecepto os Estados Unidos; um mundo onde "democracia" nada significa se seus benefícios estiverem em divergência com "interesses" americanos; um mundo em que expressar divergência em relação a estes "interesses" marca uma pessoa como terrorista e justifica vigilância e repressão.

Só há um caminho para resistir a tal potência bandida. É falar alto e claro - e é urgente. Se o nosso governo não o faz, devemos faze-lo nós.


[*] John Pilger é Jornalista australiano, escritor ("The New Rulers of the World") e diretor de documentários. "Paying the Price: Killing the Children of Iraq", foi exibido em 2002 pela televisão britânica. Os filmes e textos de Pilger podem ser vistos em http://pilger.carlton.com/. O original deste artigo (intitulado "The Rogue state") foi publicado em 04/07/2002 pelo Daily Mirror de Londres.  http://www.mirror.co.uk/. Tradução: J. Figueiredo.