No segundo ano, um bilhete me convidava pra ir até a escola, para a reunião do Royal. Royal pra mim é fermento, mas eu fui, e fiquei sabendo que a minha nenê tinha sido indicada pra fazer o exame da Royal Academy of Dancing, que viria um examinador da Inglaterra, iria ter uma aula extra por semana até o exame, seria uma pena se ela não fizesse, é um aval internacional para uma futura carreira de bailarina, e as meninas todas adoram, e é só mais x por mês, e ela pulava de contente do meu lado, e foi inevitável. Mais um coque por semana durante três meses, reuniões de mães que eu não ia, detalhes que eu não ficava sabendo, e enfim uma apresentação para as mães às sete e meia da noite, "para os papais também poderem assistir". Aí eu soube do horário do exame, numa quarta-feira às cinco da tarde, da roupa, e do complicadíssimo penteado das meninas, duas tranças cruzadas sobre a cabeça, tramadas com fitas que arrematavam as pontas. Enquanto a professora explicava como arrumar o cabelo, eu calculava o tempo: buscar no colégio, banho, vestir e pentear, e pentear, e pentear, meu Deus, que não apareça nada urgente no trabalho! Tive a idéia brilhante de levá-la no salão pra fazer as tais tranças, mas ela não me deu chance:
- Tu arruma o meu cabelo, mãe. Tu é uma artista, claro que tu vai saber fazer.
Um dia antes, eu treinei o penteado, e depois de quase uma hora ficou parecendo, segundo ela, "um E.T." Mas ela tinha uma confiança inabalável, e eu comecei a ficar nervosa.
- Não tem problema, mãe, amanhã tu acerta.
No dia do exame, mexi em todos os meus horários, desmarquei coisas, deixei outras pra fazer à noite, mas às três e meia da tarde eu estacionei o carro na frente da Escola dela, desci e fui buscá-la. Tinha uma hora inteira e mais quinze minutos, caso as coisas não dessem muito certo. Achei a minha bailarina no pátio, trepada no galho da amoreira, com a camiseta do uniforme, as mãos, as pernas, o rosto, tudo manchado de roxo:
- Mãe, a gente descobriu que já dá pra comer as amoras!
Calma, não grita com ela, não briga, ela vai ficar nervosa e ir mal no exame. Mas parecia um pesadelo, ela toda roxa, suja e escabelada, e o tempo passando. Meu Deus, as tranças!
Depois do banho, muito algodão com álcool, meus cremes de limpeza, quilos de condicionador e ela estava quase limpinha, de meia-calça e malha de ballet (Mas mãe, eu não sabia que amora deixa a gente roxa!). Eu ainda tinha quarenta e cinco minutos, então comecei repartindo o cabelo dela no meio, bem retinho. Montes de cabelo, e nunca ficava reto. Ela, pobrezinha, mal respirava pra me ajudar. Foram-se dez minutos, e agora tinha que fazer duas chiquinhas na mesma alltura. Na mesma altura! Por que não era um rabinho, um coque, um, qualquer coisa que não precisasse simetria.
- Mãe, esse lado ficou mais baixo.
Vinte minutos tentando, depois amarrando com as fitas azuis, trançando o cabelo junto com as fitas, cruzando as tranças sobre a cabeça escondendo as pontas e prendendo com grampos quase invisíveis, tudo muito firme pra não cair. Ela só suspirava, de cabeça baixa, e eu trabalhava em silêncio, tensa, quase em pânico. Parei de olhar para o relógio. E aí acabei:
- Pronto, Fifi, foi o melhor que eu consegui fazer.
Ela levantou a cabeça e se viu, uma princesinha, um bombom de licor, uma flor, uma bailarina:
- Mãe, ficou lindo! Eu sabia que ia ficar! - e me apertou bem forte, com os olhos brilhando, transbordando de sol. Eu até achei que o penteado estava lindo mesmo.
O resto foi uma correria, nós duas voando e chegando em cima da hora, os olhares meio reprovadores, meio compreensivos das professoras e das outras mães, a sapatilha de cetim comprada às pressas enquanto ela vestia o "tutu" cor de rosa especial para o exame, ela sumindo pela porta com as coleguinhas, e eu desabada no sofá, esperando. Em meia hora ela voltou feliz, num redemoinho de saias, bracinhos e sorrisos desdentados, me achou no meio das mães e se jogou em mim, radiante, já deixando pra trás o exame, o Royal, o examinador inglês, era só ela e as tranças:
- Agora me leva de volta na Escola pra eu me mostrar pra eles assim, tá? E pro mano me ver e me mostrar pros amigos. E a gente pode tomar um sorvete? Tu não vai mais trabalhar hoje, né?
Eu não fui. Fomos na Escola, tomamos sorvete, e todo mundo parava e olhava pra ela e dizia que ela estava linda. Ela dormiu com as tranças, usou no outro dia até de noite, e quando teve que desmanchar pra lavar o cabelo, ficou um tempo enorme trancada no banheiro, depois me chamou:
- Me ajuda, mãe. Não consigo voltar ao normal
sozinha.
Alice
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