Crônicas da mãe (VI): A Bailarina
por Alice
 
 
Ela faz ballet. Duas vezes na semana, ela acorda bailarina, se arruma toda enquanto eu tomo café, e espera por mim para fazer o coque. É o nosso terceiro ano, e agora eu só levo dez minutos pra fazer um lindo coque de bailarina, sem um fio fora do lugar, como ela exige. Há três anos, ela subia na cadeirinha pra eu pentear o cabelo dela, agora não precisa mais.

No segundo ano, um bilhete me convidava pra ir até a escola, para  a reunião do Royal. Royal pra mim é fermento, mas eu fui, e fiquei sabendo que a minha nenê tinha sido indicada pra fazer o exame da Royal Academy of Dancing, que viria um examinador da Inglaterra, iria ter uma aula extra por semana até o exame, seria uma pena se ela não fizesse, é um aval internacional para uma futura carreira de bailarina, e as meninas todas adoram, e é só mais x por mês, e ela pulava de contente do meu lado, e foi inevitável. Mais um coque por semana durante três meses, reuniões de mães que eu não ia, detalhes que eu não ficava sabendo, e enfim uma apresentação para as mães às sete e meia da noite, "para os papais também poderem assistir". Aí eu soube do horário do exame, numa quarta-feira às cinco da tarde, da roupa, e do complicadíssimo penteado das meninas, duas tranças cruzadas sobre a cabeça, tramadas com fitas que arrematavam as pontas. Enquanto a professora explicava como arrumar o cabelo, eu calculava o tempo: buscar no colégio, banho, vestir e pentear, e pentear, e pentear, meu Deus, que não apareça nada urgente no trabalho! Tive a idéia brilhante de levá-la no salão pra fazer as tais tranças, mas ela não me deu chance:

- Tu arruma o meu cabelo, mãe. Tu é uma artista, claro que tu vai saber fazer.

Um dia antes, eu treinei o penteado, e depois de quase uma hora ficou parecendo, segundo ela, "um E.T." Mas ela tinha uma confiança inabalável, e eu comecei a ficar nervosa.

- Não tem problema, mãe, amanhã tu acerta.

No dia do exame, mexi em todos os meus horários, desmarquei coisas, deixei outras pra fazer à noite, mas às três e meia da tarde eu estacionei o carro na frente da Escola dela, desci e fui buscá-la. Tinha uma hora inteira e mais quinze minutos, caso as coisas não dessem muito certo. Achei a minha bailarina no pátio, trepada no galho da amoreira, com a camiseta do uniforme, as mãos, as pernas, o rosto, tudo manchado de roxo:

- Mãe, a gente descobriu que já dá pra comer as amoras!

Calma, não grita com ela, não briga, ela vai ficar nervosa e ir mal no exame. Mas parecia um pesadelo, ela toda roxa, suja e escabelada, e o tempo passando. Meu Deus, as tranças!

Depois do banho, muito algodão com álcool, meus cremes de limpeza, quilos de condicionador e ela estava quase limpinha, de meia-calça e malha de ballet (Mas mãe, eu não sabia que amora deixa a gente roxa!). Eu ainda tinha quarenta e cinco minutos, então comecei repartindo o cabelo dela no meio, bem retinho. Montes de cabelo, e nunca ficava reto. Ela, pobrezinha, mal respirava pra me ajudar. Foram-se dez minutos, e agora tinha que fazer duas chiquinhas na mesma alltura. Na mesma altura! Por que não era um rabinho, um coque, um, qualquer coisa que não precisasse simetria.

- Mãe, esse lado ficou mais baixo.

Vinte minutos tentando, depois amarrando com as fitas azuis, trançando o cabelo junto com as fitas, cruzando as tranças sobre a cabeça escondendo as pontas e prendendo com grampos quase invisíveis, tudo muito firme pra não cair. Ela só suspirava, de cabeça baixa, e eu trabalhava em silêncio, tensa, quase em pânico. Parei de olhar para o relógio. E aí acabei:

- Pronto, Fifi, foi o melhor que eu consegui fazer.

Ela levantou a cabeça e se viu, uma princesinha, um bombom de licor, uma flor, uma bailarina:

- Mãe, ficou lindo! Eu sabia que ia ficar! - e me apertou bem forte, com os olhos brilhando, transbordando de sol. Eu até achei que o penteado estava lindo mesmo.

O resto foi uma correria, nós duas voando e chegando em cima da hora, os olhares meio reprovadores, meio compreensivos das professoras e das outras mães, a sapatilha de cetim comprada às pressas enquanto ela vestia o "tutu" cor de rosa especial para o exame, ela sumindo pela porta com as coleguinhas, e eu desabada no sofá, esperando. Em meia hora ela voltou feliz, num redemoinho de saias, bracinhos e sorrisos desdentados, me achou no meio das mães e se jogou em mim, radiante, já deixando pra trás o exame, o Royal, o examinador inglês, era só ela e as tranças:

- Agora me leva de volta na Escola pra eu me mostrar pra eles assim, tá? E pro mano me ver e me mostrar pros amigos. E a gente pode tomar um sorvete? Tu não vai mais trabalhar hoje, né?

Eu não fui. Fomos na Escola, tomamos sorvete, e todo mundo parava e olhava pra ela e dizia que ela estava linda. Ela dormiu com as tranças, usou no outro dia até de noite, e quando teve que desmanchar pra lavar o cabelo, ficou um tempo enorme trancada no banheiro, depois me chamou:

- Me ajuda, mãe. Não consigo voltar ao normal sozinha.
 
 
Alice
alice@vanet.com.br
  



Complete a sua coleção, lendo as outras Crônicas da mãe já pulbicadas pelo Não:
(1) O Irmãozinho no Não 55
(2) A Fada do dente no Não 57
(3) Bichinhos no Não 59
(4) A piscina no Não 61
(5) Dentro do nariz no Não 61

A Royal Academy of Dancing de Londres ainda não está na Internet. Seu endereço provisório tem apenas uma página de entrada em http://www.rad.org.uk. A filial da Nova Zelândia está em http://webnz.com/radance/. Vá lá e depois volte para o...